A dinâmica do corpo negro em “Subúrbia”

Ainda está muito cedo para análises mais aprofundadas, mas o primeiro capítulo de “Subúrbia”,  minissérie que estreou ontem na Rede Globo, me fez pensar na relação corpo / cinema.

Mais especificamente a relação do corpo negro, que por si só já carrega emblemas e estigmas históricos e torna-se, desde os nefastos tempos de cativeiro, objeto de valor econômico e, muitas vezes, de reconhecimento social.

Enquanto cineasta e espectador negro, e apaixonado pesquisador do assunto, me permiti fazer uma análise sobre o tema.

Antes, algumas considerações:

Michel Foucault talvez tenha sido o primeiro filósofo a compreender o corpo como agente de expressão de poderes que se relacionam estrategicamente.

Bem anterior à Foucault, Platão dividia o ser-humano em corpo e alma e definia o conhecimento como o estágio mais alto da vida de um ser-humano.

Platão definia a alma como sendo a instância com eterna sede de conhecimento, e que o corpo seria o maior obstáculo para se alcançar esse conhecimento.

Baruch Espinoza, ao contrário, já concebe o corpo enquanto a essência do pensamento, e não seu obstáculo. Mesma concepção de Gilles Deleuze.

Essa visão filosófica de corpo, e o excelente ponto de vista de Foucault sobre as relações de poder inerentes ao corpo, ganham uma dimensão estonteante quando analisadas sob a égide do cinema.

Tendo isso em vista, a representação do corpo negro no cinema – tema de inúmeros debates acadêmicos – e suas estratégias de relação de poder tornam-se nítidas e, porque não, perigosas.

O primeiro capítulo de “Subúrbia”, me fez pensar muito sobre isso.

Mas antes de falar nessa tal “dinâmica de poderes do corpo negro” relacionado ao cinema, permitam-me expor minha expectativa:

Aguardei demais essa minissérie. Afinal de contas, era uma obra nossa, escrito por um dos nossos (Paulo Lins) e dirigido pelo auspicioso diretor Luiz Fernando Carvalho.

Mas talvez eu tenha ido com muita sede ao pote! A julgar pelo primeiro capítulo da minissérie, nada novo. Mais do mesmo!

Só pra contextualizar, “Subúrbia” faz parte dessa tentativa da emissora em estabelecer um diálogo forte com a dita “nova classe média”. Essa aposta começou forte com a recém-encerrada novela “Avenida Brasil”.

Por que eu criei tanta expectativa em torno de “Subúrbia”?

Bom, pra começar, a idéia de se trabalhar com não-atores, ou atores desconhecidos é uma iniciativa que prezo bastante pela carga documental que isso traz à obra.

Em meus modestos filmes, sempre procuro trabalhar com atores iniciantes no cinema ou não-atores, exatamente pela ausência de técnica que, a meu ver, enriquece o naturalismo.

Outro fator que me fez criar expectativa por “Subúrbia” foram os AUTORES da minissérie. Não podiam ser melhores.

Paulo Lins é um roteirista preto que dispensa comentários. Escreveu nada mais nada menos que “Cidade de Deus”, com uma visão legitimada pelo fato de ter nascido ali, naquela comunidade carioca.

Luiz F. Carvalho, embora não faça parte do universo suburbano/periférico, talvez seja o diretor mais independente e autoral dos diretores da Rede Globo.  Realizou, dentre outros, as ótimas minisséries “A Pedra do Reino”, “Capitu”  e “Hoje é dia de Maria”  além de ter dirigido o ótimo filme “Lavoura Arcaica”.

Esperei um “casamento perfeito” entre essas visões.

Apesar de ser ainda muito cedo para uma análise mais profunda da minissérie, o primeiro capítulo já nos permite uma análise, ainda que fugaz, da dramaturgia e também com relação à representação de uma imagem que se tem da periferia negra brasileira, principalmente no que tange à estética audiovisual.

A narrativa se inicia com uma fotografia contrastada, a la Sebastião Salgado, sobre a realidade dos carvoeiros do interior de Minas Gerais. É de lá que vem fugida a pequena Conceição, protagonista da série.

O deslocamento da protagonista para o Rio de Janeiro também se configura enquanto deslocamento estético.

Na carvoaria, a imagem é contrastada, quase preta e branca, dura e desfocada, enquadrando em detalhe as rugas e as peles negras maltratadas por aquele ambiente.

Ao chegar no Rio de Janeiro, essa imagem satura-se, ganha cor e a câmera passa a narrar a trama de forma diferente. Enquadra-se o caos, a festa, a irreverência, o crime.

As peripécias e percalços por que passa a pequena Conceição em solo carioca – permeados pelo estigma crime/polícia/samba/funk – já são narradas com câmera na mão, frenética, buscando foco ao acompanhar a ação dos personagens.

Estética que remete totalmente ao clássico “Cidade de Deus”, que acaba suscitando um inadiável questionamento: estaria a Rede Globo condenada à estética “Cidade de Deus” ao representar nossa realidade suburbana?

Estaria nossa identidade essencial condenada e restrita a esse único ponto de vista? Ou estaria o subúrbio carioca da Globo condenada a isso?

A resposta retoma a questão da dinâmica do corpo negro no cinema brasileiro recente, fato que traz algumas características  interessantes.

O corpo negro Global é um corpo que brilha e reluz. Ao invés de ser um corpo político, torna-se mercadoria em todo seu poder efêmero. Uma construção cultural dominante, concebida a satisfazer necessidades – sexuais, sociais e estéticas.

Não são raras as entrevistas e textos em que diretores de arte da emissora admitem passar óleo nos atores/atrizes negros(as) afim de enfatizar as linhas musculares, objetificando-os, numa tentativa mercantil de virilização exótica/erótica do corpo negro.

No final do episódio, o corpo de Conceição é marcado violentamente por um estupro que lhe tira a virgindade. Estuprada pelo patrão branco, na casa onde trabalha como doméstica. Um corpo marcado, como nos tempos da senzala.

Se no cinema padrão Hollywoodiano temos a representação de um corpo platônico, ou seja, um corpo que é obstáculo do conhecimento, da vida, temos na recente produção audiovisual brasileira justamente o contrário: a tentativa Deleuziana de chegar a um conhecimento-síntese através do corpo.

John Cassavetes, um dos grandes cineastas do corpo, descobre (através de seu cinema) que uma forma poderosa do pensamento/conhecimento se apoderar do corpo é justamente através do TEMPO.

Para Cassavetes, o tempo faz parte do corpo. Em seus filmes, o tempo se dilata para motivar a narrativa. Para fazer conhecer.

O que se pode observar nas apropriações do corpo negro por parte da “estética da Rede Globo” é a ESPETACULARIZAÇÃO MERCANTIL desse corpo, justamente ao diluir esse tempo na montagem. E é justamente isso que me incomoda enquanto cineasta, pesquisador.

A estigmatização semiológica desse corpo negro televisivo acaba virando conceito e é absorvido como caminho mais autêntico de representação dessa realidade suburbana.

O discurso dos autores e da emissora de desconstruir estereótipos sobre “o outro” é legitimado, mais uma vez, pela participação de um insider ( termo em inglês que significa “de dentro”, ou seja, quem pertence e vem de dentro da cultura retratada).

O “olhar estrangeiro” sobre determinado assunto não mais tem espaço na nova conjuntura do “políticamente correto” audiovisual, o que acho um discurso equivocado, mas compreensível.

Esse insider é justamente Paulo Lins, renomado roteirista, engajado militante estético das causas negras. Um autor de estilo apaixonante e único.

Mas ao analisar “Subúrbia” até aqui, muito mais amplos foram os olhares dos diretores (também insiders) do “5 Vezes Favela – Agora por Nós Mesmos”.

Quanto à “Subúrbia”, os atores estão simplesmente divinos, com destaque para a revelação Erika Januza (no papel de Conceição).

Ainda está muito cedo e espero, de verdade, ser surpreendido no desenrolar da trama.

Torço muito para que “Subúrbia” não seja mais um lampejo de uma possibilidade não concretizada no que diz respeito à representação do nosso povo. E que essa minissérie não se contente apenas em ser “uma obra com um elenco 100% negro”.

Vida longa ao nosso povo naquilo que temos de melhor: nossa pluralidade e multi-dimensionalidade.

E que venham os próximos capítulos!

Déo Cardoso
Cineasta